quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Francisco: uma bela surpresa de Deus. Entrevista especial com Dom Mauro Morelli


Segunda, 19 de agosto de 2013 

“Por causa da convivência com os pobres, Francisco percebeu quais são as questões importantes. A prioridade dele é estar junto desse povo, dar-lhe atenção, incentivar para que levante e caminhe”, diz o bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti.


Foto: D. Mauro Morelli


“Francisco é um bispo que Deus colocou no submundo da periferia, por isso convida a Igreja a voltar-se para este mundo”, diz Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, no Rio de Janeiro, em entrevista concedida à IHU On-Line pessoalmente. Para ele, o pontificado de Francisco acena para “algumas questões que precisam ser entendidas”. Entre elas, enfatiza, “resgatar a dimensão humana, porque, do contrário, tudo perde o sentido. Com grande determinação afirma sua própria humanidade e o que significa ser gente, comportar-se como gente e comover-se como gente”.


Confira a entrevista





Dom Mauro Morelli esteve presente no encontro do Papa com os bispos brasileiros durante a Jornada Mundial da Juventude – JMJ, e avalia que seu discurso sinalizou para a importância da “conversão pastoral”, para a necessidade de “entender que os bispos são servidores desse povo, portanto, não estão em um andar superior”. E acrescenta: “Conversão pastoral significa entender, aceitar e viver o pastoreio”.

Mauro Morelli (foto abaixo), fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos articuladores do Movimento pela Ética na Política que lançou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do primeiro Conselho de Segurança Alimentar, em 1993, para a superação dos males da fome. Promotor de Nutrição do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, promoveu o Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-Infantil da Diocese de Duque de Caxias, RJ. Atualmente preside o CONSEA/MG - Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável.


IHU On-Line - Como foi seu encontro com Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude - JMJ?

Dom Mauro Morelli – Minha participação na Jornada Mundial da Juventude – JMJ foi muito restrita por várias razões, inclusive por questões climáticas de chuva e frio. Participei da missa na Catedral e do encontro do Papa com os bispos do Brasil. Depois do almoço, cada bispo pode se aproximar brevemente dele para uma saudação, tendo o bom senso de perceber que éramos mais de 200. Ao saudá-lo disse-lhe três coisas. A primeira delas foi: “O senhor é uma surpresa de Deus”. Surpresa de Deus porque a Igreja passando por uma profunda crise, alguém inserido no sistema não seria capaz de ter a liberdade de espírito para entender a crise e coragem para dar passos novos. Por isso, os cardeais chamaram um bispo de longe, que trouxe uma provocação para a Igreja e para a humanidade. Há pouco tempo soube da afirmação feita por membro da Cúria Romana que o Papa para empreender reformas escolheu um grupo de cardeais que nada entende da Cúria. Ótimo que não entendam, porque se “entendessem”, ficariam impotentes e nada fariam.

Após o almoço todos os bispos presentes pudemos saudar o papa e trocar algumas palvras. FOTO: D.Morelli 


Uma segunda palavra sobre a referência aos bispos eméritos em seu discurso aos bispos brasileiros, afirmando ser necessário valorizar a participação dos eméritos e dos idosos na Igreja para dialogar com os mais jovens, para ajudar a compreender e a entender caminhos. Disse ao Papa que considerava lamentável que no Brasil somos 160 bispos eméritos e não integramos a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.

Em conversa com o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, entendi que em Gana, seu país, os eméritos são membros da Conferência, enquanto que no Brasil, o bispo emérito não é membro. Se houver um Concilio Ecumênico, a maior reunião da Igreja, o bispo emérito participa com direito pleno. Na CNBB, o bispo emérito é um convidado.


Cardeal Tuckson, presidente de Pontifício Conselho de Justiça e Paz e dom Francisco, bispo em Moçambique. FOTO: D.Morelli


Por último disse ao Papa é que me dedico à questão da fome há muitos anos, como é do conhecimento do Cardeal Maradiaga Depois espontaneamente peguei no braço dele dizendo: “Deus te abençoe”, porque ele tem uma grande missão a realizar. Ele deve ter pensado que eu estou “meio fora de eixo”.


IHU On-Line – Qual foi sua impressão do encontro com o Papa, e que mudanças vislumbra no pontificado?

Dom Mauro Morelli – Confesso a você que me identifico muito com o Papa Francisco, porque nosso itinerário de vida pastoral é bem semelhante. Nesse sentido, a experiência de enxergar o mundo a partir da realidade em que se está situado é fundamental e decisivo. Observo que o Papa Francisco transmite impressão de autenticidade; revela coerência com os valores cultivados enquanto bispo em Buenos Aires.

A realidade provaca tensões na vida de bispo, porque uma coisa é entender o mundo a partir da Baixada Fluminense e, outra, entendê-lo do alto do Sumaré. Veja, Francisco é um bispo que Deus colocou no submundo de periferia, por isso o apelo dele é voltar-se para a periferia. Fiquei contente vendo o Papa entrando na casa de família que mora na favela; dando atenção às pessoas e revelando-se muito humano. Tenho certeza de que para muitos que vivem em Roma, essa surpresa virou um susto. O papa disse recentemente que é uma pessoa indisciplinada. Em Roma ninguém está muito seguro, porque não se sabe como o Papa irá agir e aprontar!

Para o Papa Francisco é de primordial importância resgatar a dimensão humana, do contrário tudo perde o sentido. Sentir-se gente, comportar-se como gente e comover-se como gente. Eis o grande foco de seu entendimento da natureza do pastoreio na Igreja. Recentemente declarou que se sente enjaulado, expressando a vontade de viver com liberdade e não amarrados a estruturas e conveniências.

Condição humana

Pessoalmente penso que um papa enfrenta dois problemas: o seu endeusamento na Igreja e a condição de chefe de Estado. O Papa Francisco parece recusar a assumir esses papéis. Na Igreja as coisas devem ser feitas dentro da condição humana, porque ninguém faz nada sozinho. Até o Deus em que cremos é comunitário. Portanto, o Papa está dizendo que tudo na Igreja tem de ser trabalhado de forma participativa, corresponsável, colegiada e sinodal. Essa dimensão é o reconhecimento de nossa limitação humana e que nenhum de nós esgota a verdade, maior do que todos nós.
Ele já acenou que o sínodo deve ser mais valorizado. Acredito que o Sínodo não deveria ser apenas consultivo, mas com o papa participando e abençoando o consenso.

Reformas

Alguns falam que a Igreja deve vender tudo que tem e doar o dinheiro aos pobres. Essa é uma conversa um tanto desqualificada, porque não se resolve problema dos pobres vendendo museus. Além do mais, a Igreja tem a custódia de herança histórica, cultural e artística, que não pode ser jogada fora. Mesmo que o Papa quisesse se livrar disso, seria um processo lento para encontrar uma solução adequada. Trata-se de um assunto muito complexo.

Importante que a Igreja participe de organismos da ONU, através de leigos e leigas eminentes na fé e no saber. Um grande passo se o Papa confiasse atividades diplomáticas, problemas sociais e ambientais, junto à ONU e Governos, à Secretaria de Estado, integrada por mulheres e homens escolhidos dentre os quadros das Comissões de Justiça e Paz, chefiada por um primeiro ministro. 

Caberia à Congregação dos Bispos, em diálogo com as Conferências Episcopais, as questões relacionadas ao processo de constituição e provisão de dioceses. Cada Conferência Episcopal poderia ter uma comissão integrada por um delegado do Papa. Esse serviço deveria ser ligado à Congregação dos Bispos, e não à Secretaria de Estado. Hoje o núncio, que é o embaixador, tem em sua mão toda a relação com o poder político e com a Igreja. Ele quem faz os processos de constituição de dioceses e eleição de bispos, sem um bom conhecimento do país e da realidade. 

Considero princípio básico que Deus só pede para você fazer alguma coisa que ordinariamente está dentro da condição humana. O Papa tem uma consciência da grandeza da missão e da limitação humana. Vejo que um equacionamento nessas duas direções seria fundamental. Obviamente que a descentralização do serviço, permite encontrar outros mecanismos de participação.

Chegamos, na Igreja, a um paralelismo semelhante ao dos governos, com um grau de burocracia que atravanca nossa capacidade de agir. Coisa boa o Papa enfatizando sua humanidade. Por isso afirma sentir-se enjaulado, não podendo ir para rua! Veja a que ponto chegamos! O Bispo e pastor da Igreja de Roma não pode sair à rua para encontrar seu povo?

IHU On-Line – Que interpretação fez do discurso do Papa aos bispos do Brasil? Como os bispos brasileiros reagiram às mensagens de Francisco?

Dom Mauro Morelli – Ponto fundamental do discurso ter afirmado que bispo é pastor. A conversão pastoral é justamente entender que os bispos são servidores desse povo, portanto, não estão em um patamar superior. O Papa disse: “Sejam pastores, andem na frente das ovelhas para abrir caminho, no meio delas, para constuir entendimento e, atrás, para ninguém ficar isolado”. Então, conversão pastoral significa saber, aceitar e viver o pastoreio.

Francisco recomendou que nos livremos da psicologia de príncipes. O processo histórico fez do Papa um rei e, dos bispos, príncipes. No Brasil também sempre construíram palácios para os bispos. Na diocese, a primeira vez que me chamaram de Vossa Excelência, eu disse: “Nunca mais me xinguem com esse nome”. Toda criança que nasce no mundo é excelentíssima e reverendíssima. Quer dizer, é excelente e tem de ser reverenciada. Não é porque eu sou bispo que sou excelência. O Papa demonstra querer romper com essa cultura.
Obviamente, não podemos ignorar a história, mas o Papa pode mudá-la. Francisco desmistificou o papado, mostrando que o Papa também é gente. Além do mais, ele está dizendo que a Igreja está cheia de estruturas velhas e é preciso mudá-las.

Por causa da convivência com os pobres, Francisco percebeu quais são as questões importantes. Sua prioridade é estar junto do povo, dar-lhe atenção, incentivar que levante e caminhe. O Papa está dizendo para a Igreja: “Saia de si mesmo e vá para a periferia”. Recordo as diretrizes de Dom Paulo Evaristo Arns para seus bispos auxiliares. Unidos cada um caminhando numa direção, ou seja, a ordem era os bispos irem para fora, para a periferia; voltando à Catedral no dia de Corpus Christi, para simbolizar a unidade do povo de Deus. O Papa está clamando pela periferia. Sinto-me muito identificado com ele. Alegro-me pelas suas escolhas, semelhantes às minhas.

Rogo a Deus para que o Papa tenha força e determinação. Penso que vai sofrer muito.. Sua missão exige muito amor e doação. Ele não aceita ser enquadrado num molde e num estilo de vida que não corresponda ao Evangelho. Sempre digo que quanto mais humana a pessoa for, mais evangélica será. A grandeza da vida em comunhão fraterna e solidária é o Reino de Deus. O segmento de Jesus me põe num caminho, no qual a coisa mais preciosa é a vida em comunhão, a integração das pessoas. A essência do Evangelho é a comunhão.