Entrevista especial com
Dom Mauro Morelli
“De
32 milhões de brasileiros, ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança
alimentar e nutricional; mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de
duas décadas resolvemos uma calamidade que perdura desde 1500”, afirma Dom
Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de
Meriti, que há anos dedica-se a solucionar os problemas da fome e da miséria no
Brasil. Um dos críticos do Programa Fome Zero, no governo Lula, Morelli afirma
que “a visão triunfalista impede dizer que não fizemos o mais importante.
Patinamos em medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou
periclitante, mas que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas
estruturais”.
Em
entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele assinala que o mapa da fome
cobre “toda a superfície do planeta e não será resolvido pela economia de
mercado”. Cita como exemplo a proposta da Cúpula da Alimentação, convocada pela
ONU, a qual tinha o objetivo de reduzir pela metade o número de famintos no
mundo até 2015. “Tudo o que foi feito não atinge o objetivo proposto, ou seja,
quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão
de seres humanos sofrendo os horrores da fome não atendida”, lamenta.
Mauro
Morelli foi o fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos fundadores do
Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome,
a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do conceito de segurança
alimentar como combate à fome e foi um dos articuladores do programa Mutirão de
Combate à Desnutrição Materno-Infantil. Foi membro do Comitê Permanente de
Nutrição da ONU, e atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.
Confira a entrevista
IHU On-Line – A partir
do trabalho que desenvolveu de combate à miséria e à fome, como avalia essa
questão no país? Considerando o tempo que o senhor atua a favor dessa causa,
que balanço faz da questão?
Dom Mauro Morelli – A fome em si é coisa boa. Um sintoma
ou alerta emitido pelo cérebro para chamar atenção para a necessidade de
alimentar e nutrir o organismo, pois a vida é um processo permanente de
alimentação. Alimento é Vida.
Problema
sério é ser privado do direito ao acesso e gozo do alimento. Mais do que um
problema, trata-se de ser vítima de crime hediondo e grave pecado. A questão
não é acabar com a fome, mas garantir acesso e gozo ao alimento que sacia e
nutre. A Força da Vida vem da luz, do oxigênio, da água, das carícias da brisa
e da ternura do amor. Leite materno, arroz e feijão, legumes e frutas, peixes e
carnes são indispensáveis nas etapas de nosso desenvolvimento e formação.
Alimentação saudável, adequada e solidária é imprescindível desde a gestação
até o encerramento do ciclo histórico de nossa existência. Em nosso DNA estão
registradas certezas e angústias da importância prioritária do alimento e da
nutrição na história da humanidade.
As
civilizações e a rica diversidade cultural entre os povos atestam a
centralidade do alimento e da nutrição para a realização das pessoas, das
famílias e nações. Alimento e nutrição são exigências inegociáveis da nossa
vida no planeta, portanto direito humano básico e determinante para tudo o
mais. A garantia do alimento fundamenta a própria paz. Alimentar o corpo, a
alma e o espírito é questão de cidadania planetária e razão primeira do progresso
e do desenvolvimento.
IHU On-Line – Como se
constitui hoje o mapa da fome no Brasil? Em que regiões do país a fome ainda
continua sendo um problema central?
Dom Mauro Morelli – O Mapa da Fome cobre toda a
superfície do planeta e não será resolvido pela economia de mercado; ao
contrário, ele é cada vez mais agravado pela degradação ambiental e exclusão
social, pela instabilidade do emprego e migração forçada a que famílias e povos
estão submetidos, submissão que se dá por um modelo de desenvolvimento que suga as riquezas
da terra e as energias de quem trabalha e, ao mesmo tempo, que cultiva o
desperdício e concentra bens e riquezas.
Em 1996, em Roma, a Cúpula da Alimentação, convocada pela
ONU, marcou data e definiu compromisso para o enfrentamento do problema da fome
no mundo. “Tudo faremos para reduzir pela metade o número de famintos no mundo
até 2015”.
Em verdade tudo o que foi feito não atinge o objetivo
proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015
com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não
atendida. É impossível sonhar com a paz enquanto uma só criança definhar e
morrer de fome (Isaías, 65).
Entre nós, muito foi feito; de 32 milhões de seres humanos,
ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional.
Mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolveremos
uma calamidade que perdura desde 1500.
Mais grave ainda é a visão triunfalista que impede dizer que
não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas assistenciais, exigência do
direito lesado, negado ou periclitante, mas que, por natureza, não se destinam
a equacionar problemas estruturais. A obesidade em números alarmantes é a outra
face da realidade nutricional resultante do assistencialismo com suas migalhas
e da falta de educação alimentar e nutricional que nos motive a comer e beber
como opção pela vida. Não nos esqueçamos, além do mais, que “o veneno está à
mesa”, dada a qualidade dos alimentos produzidos e comercializados visando o
lucro.
A Profecia dos Caranguejos
Deve ser atribuído a Josué de Castro o mérito de termos
atingido elevado grau de consciência sobre as causas e males da fome. Por seu
testemunho e obra, pode ser denominado e honrado como o grande Profeta da Vida
no século XX. Nos mangues do Capibaribe, e não na Sorbonne, ele entendeu a
fome.
“Um dos fatores mais constantes, o desequilíbrio econômico,
com as desigualdades sociais que dele nascem”. “A fome sempre existiu perto da
riqueza e da abundância. O que é novo no mundo é a consciência que os povos
famintos têm da realidade social e da sua condição e a impaciência que
experimentam para se libertar da fome e de suas misérias”.
Na obra Geopolítica da Fome (1946), afirma com indignação:
“Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão
nocivo a personalidade humana como a fome”.
IHU
On-Line – Em que consiste uma política pública comprometida em acabar com a
fome no mundo?
Dom
Mauro Morelli – Na Carta Encíclica Caridade na Verdade (n. 27), Bento XVI
louva a “quem se consagra a trabalhar para erradicação da miséria e dos males
da fome, pois contribui para a preservação do planeta e a paz mundial”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, em sua
40ª Assembleia Geral (2002), assumiu o compromisso de promover um Mutirão
Nacional à luz de “Exigências Evangélicas e Éticas para a Superação da Miséria
e da Fome” (Doc. 69). Observo que, no número 66, não deixa dúvida que “um dos
primeiros sinais de efetiva evangelização, no início deste milênio, será a
eliminação da fome decorrente da miséria, em nosso país”. No número 65
recomendava acompanhar a continuidade da Cúpula Mundial da Alimentação!
Com o Papa Francisco é possível que se revertam as opções
predominantes na vida eclesial nas últimas décadas. Num mundo torturado pela
fome, a maré “não está prá peixe”. Quem tem ouvidos, ouça!
Cabe à família, à sociedade com todas suas instituições, e
aos governos, em todos os níveis e áreas de abrangência, zelar, promover e
garantir o acesso e gozo do alimento e da nutrição a cada criança que nasce
neste planeta. Devemos combater a concentração de riqueza e sua filha
primogênita, a miséria.
Integrados na cadeia alimentar, que constitui a riqueza e a
originalidade do planeta em que fomos dados à luz, cabe-nos zelar e cuidar das
fontes da vida e de sua sociobiodiversidade. É tarefa urgente fazer surgir e/ou
fortalecer sociedades democráticas que garantam e promovam o bem comum e
direito humano básico, assegurando a cada um o acesso ao alimento e à nutrição
para uma vida saudável e participativa. Além disso, é tarefa urgente promover o
desenvolvimento local, integrado e sustentável que defenda, preserve, recupere
e conserve o meio ambiente para a atual e para as futuras gerações.
Pode ser um bom começo
planejar o desenvolvimento de baixo para cima, em cada microbacia, à luz do
binômio indissolúvel Educação e Nutrição, para atingir os objetivos da Lei n.
11.957, com novas disposições sobre alimentação escolar.
Fonte:
Cadernos IHU em formação – Alimento e Nutrição “No contexto dos objetivos de
desenvolvimento do milênio”
Nenhum comentário:
Postar um comentário