terça-feira, 15 de novembro de 2011

Salve a República ou ...Quilombo do Brasil? (II)


Partilho  em meu "blog" nova reflexão sobre a comemoração da Proclamação da República, no contexto de dois grandes e recentes eventos nacionais. A IVª Conferência Nacional de Segurança Alimentar Nutricional Sustentável e o 5º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, realizados na semana de 07 a 11/11, em Salvador e Porto Alegre, respectivamente. A pacificação da Rocinha e adjacências oferece-me a moldura perfeita para a  exposição das provocações e propostas.

Neste novo texto estou editando e completando respostas dadas a algumas questões que tem sido levantadas com frequência nos últimos anos. Por primeiro, procuro responder às indagações sobre a diferença entre meu trabalho como bispo da diocese de Duque de Caxias e agora  peregrinando tempo integral a serviço da defesa e promoção do direito humano ao alimento e à nutrição. Num segundo momento, minha visão da realidade sofrida da Baixada Fluminense. Em terceiro lugar, meu posicionamento sobre o tratamento do Governo Lula à segurança alimentar. Por último, quais caminhos somos desafiados a percorrer nesta década para alcançar objetivos inadiáveis para um novo milênio com saúde e paz.

I -  Atuação como bispo na diocese e na peregrinação pelo direito ao alimento e à nutrição

A tarefa principal de um bispo é evangelizar e sua principal ocupação, cuidar da Igreja para que seja a presença humana e histórica de Cristo Pastor. Como João Batista, a Igreja é uma lâmpada, não é a Luz; a voz, mas não a Palavra. Oportuna e inoportunamente anuncia o Reino de Deus, um Reino de Verdade e de Vida, de Justiça e de Paz. A exemplo de Maria, anuncia que o olhar de Deus pousa sobre os pequenos e fracos, seus prediletos. É vocação da Igreja, como testemunha do Senhor Jesus, o exercício permanente da misericórdia. Estar junto aos míseros e sofredores para que se levantem e caminhem com dignidade e esperança.

Durante vinte e quatro anos caminhei na Terra Santa da Baixada Fluminense. Como bispo fundador da Diocese de Duque de Caxias procurei levar a Boa Nova da dignidade humana a um povo violentado em seus direitos e humilhado de tantas formas. Por toda a parte clamei contra o extermínio. Além da formação das Comunidades e de seus pastores e catequistas, eram minhas prioridades a criação e formação de novas Comunidades e apoio às associações e movimentos populares. Ao iniciar a diocese, contávamos com noventa e cinco comunidades católicas. Ao entregá-la ao segundo bispo, somavam duzentas e trinta e três.

Realizamos um grande mutirão para resgatar crianças da desnutrição que impede o desenvolvimento integral da pessoa. Chegamos a quarenta mil crianças com rosto, nome e endereço.  Nosso trabalho foi integrado no relatório do Prof. Jean Ziegler, relator da ONU para o direito humano ao alimento e à nutrição. Em conseqüência fui convidado a integrar o Comitê Permanente de Nutrição (SCN-UN), tendo sido designado como promotor de nutrição do mesmo SCN.

A participação na luta contra a miséria e os males da fome, desde março de 1993, levou-me a todos os recantos do Brasil, dificultando meu trabalho na diocese. Após longo processo de  recuperação de grave acidente em 2003, roguei ao papa João Paulo II para me liberar do compromisso  com a diocese para me dedicar tempo integral à causa da defesa e promoção do direito humano ao alimento e à nutrição.

Assim, desde 2005, sou um bispo católico e peregrino a serviço dessa causa com presença em vários Estados Brasileiros, especialmente Minas Gerais, São Paulo,  Paraná, Pernambuco e Baixada Fluminense, dialogando com Universidades, com o Poder Público e com os Movimentos Sociais para que o direito ao alimento e á nutrição seja conhecido, reconhecido, exigido e vivido.

Segundo o papa João Paulo II, isto acontece se houver uma orquestração da ação da família, da sociedade em sua composição tão rica e diversa e dos Governos, em todos os níveis. Em meu trabalho enfatizo sempre que o meio ambiente é determinante; o direito, fundamento; a saúde, razão de ser; e, a criança, menina dos olhos.

Segundo o papa Bento XVI (Encíclica Caridade na Verdade - 29/06/2009) o combate à fome e à exclusão social é um imperativo ético para a Igreja. Quem se dedica a esta causa, está contribuindo para a preservação do Planeta e a promoção da Paz. Assim, considero-me fiel à missão que me foi confiada como bispo, embora não esteja a serviço de uma Diocese. Não é fácil tarefa a evangelização centrada na defesa das fontes da vida e na promoção do direito humano ao alimento e à nutrição. Com meu trabalho missionário, estou cuidando do que é mais precioso no Evangelho: a pessoa humana! Que uma criança não morra criança, a razão de ser de minha vida e do meu trabalho (cfr. Isaias, capítulos 65 e 58).

Tenho me dedicado à promoção do direito. Fui o articulador da primeira lei estadual (MG) e das primeiras leis municipais de segurança alimentar e nutricional sustentável.  Trabalho  em diálogo com um bom número de  Universidades, pois fome e miséria não serão vencidas sem educação e mudanças radicais em nossos hábitos e costumes. Sociedade e governos trabalham como se a questão social fosse um problema de “caridade” e de assistência.

Doravante busco direcionar meu tempo e energias para comunicação e educação à distância, a partir do Centro de Evangelização João Paulo II, em Indaiatuba, SP, em parceria com várias universidades. Oportunamente espero editar e tornar público escritos que, desde 1975, relatam os passos dados e caminhos percorridos em meu pastoreio, até o presente. Com os mesmos objetivos e com o mesmo espírito espero continuar peregrino nos dias de minha vida.

II - Visão da Baixada Fluminense 



Um retrato em preto e branco do Brasil. Até 1964, sua vocação foi o serviço de abastecimento e de lazer da metrópole. Após 1964, vindos de todos os recantos do país, nela os migrantes forçados pelo modelo de desenvolvimento imposto pelo  Golpe de Estado, foram se aninhando ao lado dos “beneficiados” pela Lei Áurea.

Em verdade, morros e alagados foram a porção “destinada” ao povo negro descartado pela ordem econômica, em nova etapa de dominação dos recursos naturais e de exploração do trabalho humano.

Como ocorre nestes dias, novas ocupações não resolvem o grave problema social e ambiental que transforma a Baixada Fluminense, a Zona Norte Carioca e outras regiões metropolitanas em “Coroa de Espinhos” da Cidade Maravilhosa, outrora soberba capital do Império e da República. 

Enquanto os pobres forem criminalizados pela sua pobreza, as ocupações não passarão de exercício de prepotência e de “controle social” em benefício  dos turistas e dos que efetivamente gozam de cidadania.

Não se resolve o problema da miséria (não da pobreza) enquanto houver concentração de riqueza.  Aliás, a riqueza não vive sem a miséria, sua filha bastarda. A riqueza e a miséria desfiguram o ser humano!  Ser pobre é viver como gente, com dignidade e cidadania, sem esbanjar e sem acumular nada. Não há paz sem justiça. As ocupações dos morros do Rio, sempre repercutem na Baixada. Os “bandidos” que escapam do Rio, de forma violenta ocupam outros espaços.

Em 12/12/10, estive em Jardim Amapá, para celebração que mantém viva a memória do massacre de uma família em 1988. Um casal, estando grávida a esposa, e três meninas. No local do massacre, ergue-se hoje a Comunidade Nossa Senhora dos Mártires, com um belo santuário e centro de formação. Naquela celebração também clamamos contra extermínio de jovens encurralados numa sociedade sem rumo e sem justiça. Somente no ano de 1989, mil e cem pessoas sofreram morte violenta nos municípios de Duque de Caxias e São João de Meriti.
O Estado do Rio de Janeiro sofre de grave crise de identidade em sua relação com a porção ocupada  pela Cidade do Rio de Janeiro! Em verdade, nas campanhas políticas fica evidente a primazia da Cidade Maravilhosa.

Nem a Igreja Católica se entendeu bem com a população do Estado. O próprio episcopado do Estado quase sempre é importado de outras regiões, sinal da "imaturidade" da Igreja na região (pelo menos, na visão do poder central). A Igreja nunca acertou os passos com a evangelização do povo negro. Aliás, o desafio para a Igreja em qualquer lugar é o dialogo respeitoso com as diferentes culturas. Evangelho é Luz e Fermento, não uma superposição cultural.

O Rio de Janeiro, com mais pessoas sem religião declarada do que a soma de todos os “evangélicos”, caracteriza-se pelo sincretismo religioso, pelo hedonismo e pelo pluralismo de opções que dariam sentido e norte para a vida humana.

Neste contexto, sem querer pecar contra a caridade, as classes dirigentes e políticas, com honrosas exceções,  causam-me espanto e, às vezes, asco. Contudo, continuo enamorado pelo povo carioca e fluminense, tão pluralista, malicioso e paciente, assim plasmado na escola da sobrevivência. O “malandro” é um sobrevivente altamente qualificado num território em que a cidadania sempre foi privilégio de uns poucos.

A Baixada Fluminense é Terra Santa, banhada pelo sangue derramado de tantos inocentes e pelo suor de mulheres e homens madrugando para um dia de trabalho desqualificado pela ganância de quem acumula riqueza. A cor branca é passaporte nas noites dessa região em que mais da metade da população é de raça negra.

III- Ação do Governo Lula

O Lula não foi ditador e nem traidor como alguns afirmam, por preconceito ou por desencanto. Não chegou à presidência por um golpe de estado e nem por uma revolução, mas pelas alianças dos partidos políticos que tutelam a população e pelas elites que controlam os meios de comunicação e a economia do país. Haja vista a aceitação do mercado financeiro e do mundo empresarial, os principais beneficiários dos méritos do Governo Lula. Mesmo a Bolsa Família, se não resolve o problema familiar da fome gerada pela exclusão, sem dúvida aquece o mercado local!

A Bolsa Família é a principal resposta do Governo Lula ao problema da fome. Válida como medida de assistência social, expressa o principal enfoque com que o problema dos males da fome foi tratado pelo Governo Lula.  Reafirmo que não é uma questão de caridade e nem de assistência social. No seu governo a coordenação das respostas a um direito básico estavam confiadas ao Ministério de Assistência Social ou de Desenvolvimento Social.

Os dados divulgados por organismos com IBGE e IPEA, contradizem as afirmações do Governo e do próprio presidente em seu último mês de mandato. Não é verdade que cada um dos brasileiros e brasileiras tem garantidas as três refeições por dia! “O Brasil mudou tanto. Ninguém mais passa fome neste país” – ouvi esta a firmação da boca de uma pessoa muito querida e de comportamento ético, sentada a meu lado numa viagem aérea. Como se tratava de alguém com “status” de ministro, fiquei estarrecido e clamei por misericórdia divina, com medo que o avião sofresse um acidente.

IVª -  Objetivos e Metas do Milênio - nova etapa

Passaram-se os anos de FHC e de Lula, a renda continua centralizada de forma escandalosa e alimento continua sendo transformado em moeda ou “commodity”. Sem equacionar estas questões continuaremos sofrendo a degradação ambiental e o acirramento da questão social.
O que está em jogo é o modelo de desenvolvimento, como denunciva o Movimento pela Ética na Politica. A Lei Federal 11.947/09, uma das grandes medidas do presidente Lula, abre caminho para profundas transformações. A partir de cada micro bacia ou região, o Brasil se desenvolve produzindo alimento saudável, adequado e solidário para o Programa da Alimentação Escolar.

Hoje, um programa grandioso e simbólico, ao mesmo tempo. Porém, se a escola continuar sendo a referência e não o estudante, o programa não vai garantir a formação de uma nova geração inteligente, vigorosa e criativa, pois devidamente alimentada e nutrida. Centrado no estudante, o programa deve atender 100% das necessidades nutricionais do ser humano, não apenas 30%; garantido nos 365 dias do ano, não apenas em 200 dias escolares. Não há educação sem nutrição e vice-versa, um binômio indissolúvel.  Eis um grande desafio para a nova Presidente, o Congresso Nacional, Estados e Municípios, com a participação das famílias e da sociedade.

Com o binômio educação e nutrição, como nova opção para o desenvolvimento, o Brasil poderá iniciar gloriosa etapa de sua história. Escolhe a vida, Brasil. Alimento é vida e caminho da paz.  Nenhum objetivo do milênio se concretiza sem o alimento que nutre a vida.
Alguns pressupostos para superar o quadro de indigência e de exclusão devem ser considerados como exigências fundamentais da cidadania e da democracia. 

Libertar o povo brasileiro da "praga" do analfabetismo, é condição "sine qua non". O analfabeto corre o risco de exploração econômica, social, política e, mesmo, religiosa.
Com grande atraso, empreender revisão profunda do sistema latifundiário e novo direcionamento para a política agrária e agrícola.

Solução imediata, de baixo custo e de grandes benefícios (sociais, econômicos...) para o drama secular da titulação das terras devolutas urbanas e rurais. Outros documentos e títulos são fundamentais para o exercício da cidanania em nossa cultura e para atender a burocracia.
Cumprimento efetivo das diretrizes da política nacional de alimentação e nutrição, especialmente o monitoramento nutricional da população e o controle sanitário dos alimentos.

O caminho anunciado por Josué de Castro em sua profecia exige o cumprimento dos objetivos e metas do milênio. Em 2015, o número da famintos deveria estar reduzido pela metade segundo decisão da Cúpula Mundial de Alimentação, em 1996. Objetivo não atingido. Pelo contrário, ultrapassa a cifra de um bilhão,  o número das víitmas dos males da fome em todo o mundo.

Retomo proposta apresentada no texto anterior para as universidades, movimentos sociais, instituições religiosas e outras instituições de participação em defesa da vida com qualidade e dignidade. 

Vamos caminhar para um grande encontro em Belém, em 2013. Iremos definir conteúdos e intensificar preparativos para a grande VIGÍLIA da NAÇÃO, na noite de 15/10/2015.

Amanheceremos nas praças, na manhã de 16/10/2015, Dia Mundial da Alimentação, para clamar pelo direito humano básico ao alimento e à nutrição, com denúncias e propostas para um Pacto Social que faça de nós uma Nação em Estado constituida.
Salve a República ou ... Quilombo do Brasil?!



Indaiatuba, SP, 15 de novembro de 2011
+Mauro Morelli, bispo católico ou peregrino



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