quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Combate à fome: o desafio de equacionar problemas estruturais


Entrevista especial com Dom Mauro Morelli


 

“De 32 milhões de brasileiros, ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional; mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolvemos uma calamidade que perdura desde 1500”, afirma Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, que há anos dedica-se a solucionar os problemas da fome e da miséria no Brasil. Um dos críticos do Programa Fome Zero, no governo Lula, Morelli afirma que “a visão triunfalista impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele assinala que o mapa da fome cobre “toda a superfície do planeta e não será resolvido pela economia de mercado”. Cita como exemplo a proposta da Cúpula da Alimentação, convocada pela ONU, a qual tinha o objetivo de reduzir pela metade o número de famintos no mundo até 2015. “Tudo o que foi feito não atinge o objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não atendida”, lamenta.
Mauro Morelli foi o fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos fundadores do Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do conceito de segurança alimentar como combate à fome e foi um dos articuladores do programa Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-Infantil. Foi membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, e atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.

Confira a entrevista

IHU On-Line – A partir do trabalho que desenvolveu de combate à miséria e à fome, como avalia essa questão no país? Considerando o tempo que o senhor atua a favor dessa causa, que balanço faz da questão?

Dom Mauro Morelli – A fome em si é coisa boa. Um sintoma ou alerta emitido pelo cérebro para chamar atenção para a necessidade de alimentar e nutrir o organismo, pois a vida é um processo permanente de alimentação. Alimento é Vida.
Problema sério é ser privado do direito ao acesso e gozo do alimento. Mais do que um problema, trata-se de ser vítima de crime hediondo e grave pecado. A questão não é acabar com a fome, mas garantir acesso e gozo ao alimento que sacia e nutre. A Força da Vida vem da luz, do oxigênio, da água, das carícias da brisa e da ternura do amor. Leite materno, arroz e feijão, legumes e frutas, peixes e carnes são indispensáveis nas etapas de nosso desenvolvimento e formação. Alimentação saudável, adequada e solidária é imprescindível desde a gestação até o encerramento do ciclo histórico de nossa existência. Em nosso DNA estão registradas certezas e angústias da importância prioritária do alimento e da nutrição na história da humanidade.
As civilizações e a rica diversidade cultural entre os povos atestam a centralidade do alimento e da nutrição para a realização das pessoas, das famílias e nações. Alimento e nutrição são exigências inegociáveis da nossa vida no planeta, portanto direito humano básico e determinante para tudo o mais. A garantia do alimento fundamenta a própria paz. Alimentar o corpo, a alma e o espírito é questão de cidadania planetária e razão primeira do progresso e do desenvolvimento.


IHU On-Line – Como se constitui hoje o mapa da fome no Brasil? Em que regiões do país a fome ainda continua sendo um problema central?

Dom Mauro Morelli – O Mapa da Fome cobre toda a superfície do planeta e não será resolvido pela economia de mercado; ao contrário, ele é cada vez mais agravado pela degradação ambiental e exclusão social, pela instabilidade do emprego e migração forçada a que famílias e povos estão submetidos, submissão que se dá por um modelo de desenvolvimento que suga as riquezas da terra e as energias de quem trabalha e, ao mesmo tempo, que cultiva o desperdício e concentra bens e riquezas.
Em 1996, em Roma, a Cúpula da Alimentação, convocada pela ONU, marcou data e definiu compromisso para o enfrentamento do problema da fome no mundo. “Tudo faremos para reduzir pela metade o número de famintos no mundo até 2015”.
Em verdade tudo o que foi feito não atinge o objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não atendida. É impossível sonhar com a paz enquanto uma só criança definhar e morrer de fome (Isaías, 65).
Entre nós, muito foi feito; de 32 milhões de seres humanos, ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional. Mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolveremos uma calamidade que perdura desde 1500.
Mais grave ainda é a visão triunfalista que impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais. A obesidade em números alarmantes é a outra face da realidade nutricional resultante do assistencialismo com suas migalhas e da falta de educação alimentar e nutricional que nos motive a comer e beber como opção pela vida. Não nos esqueçamos, além do mais, que “o veneno está à mesa”, dada a qualidade dos alimentos produzidos e comercializados visando o lucro.
A Profecia dos Caranguejos
Deve ser atribuído a Josué de Castro o mérito de termos atingido elevado grau de consciência sobre as causas e males da fome. Por seu testemunho e obra, pode ser denominado e honrado como o grande Profeta da Vida no século XX. Nos mangues do Capibaribe, e não na Sorbonne, ele entendeu a fome.
“Um dos fatores mais constantes, o desequilíbrio econômico, com as desigualdades sociais que dele nascem”. “A fome sempre existiu perto da riqueza e da abundância. O que é novo no mundo é a consciência que os povos famintos têm da realidade social e da sua condição e a impaciência que experimentam para se libertar da fome e de suas misérias”.
Na obra Geopolítica da Fome (1946), afirma com indignação: “Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome”.

IHU On-Line – Em que consiste uma política pública comprometida em acabar com a fome no mundo?

Dom Mauro Morelli – Na Carta Encíclica Caridade na Verdade (n. 27), Bento XVI louva a “quem se consagra a trabalhar para erradicação da miséria e dos males da fome, pois contribui para a preservação do planeta e a paz mundial”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, em sua 40ª Assembleia Geral (2002), assumiu o compromisso de promover um Mutirão Nacional à luz de “Exigências Evangélicas e Éticas para a Superação da Miséria e da Fome” (Doc. 69). Observo que, no número 66, não deixa dúvida que “um dos primeiros sinais de efetiva evangelização, no início deste milênio, será a eliminação da fome decorrente da miséria, em nosso país”. No número 65 recomendava acompanhar a continuidade da Cúpula Mundial da Alimentação!
Com o Papa Francisco é possível que se revertam as opções predominantes na vida eclesial nas últimas décadas. Num mundo torturado pela fome, a maré “não está prá peixe”. Quem tem ouvidos, ouça!
Cabe à família, à sociedade com todas suas instituições, e aos governos, em todos os níveis e áreas de abrangência, zelar, promover e garantir o acesso e gozo do alimento e da nutrição a cada criança que nasce neste planeta. Devemos combater a concentração de riqueza e sua filha primogênita, a miséria.
Integrados na cadeia alimentar, que constitui a riqueza e a originalidade do planeta em que fomos dados à luz, cabe-nos zelar e cuidar das fontes da vida e de sua sociobiodiversidade. É tarefa urgente fazer surgir e/ou fortalecer sociedades democráticas que garantam e promovam o bem comum e direito humano básico, assegurando a cada um o acesso ao alimento e à nutrição para uma vida saudável e participativa. Além disso, é tarefa urgente promover o desenvolvimento local, integrado e sustentável que defenda, preserve, recupere e conserve o meio ambiente para a atual e para as futuras gerações.
Pode ser um bom começo planejar o desenvolvimento de baixo para cima, em cada microbacia, à luz do binômio indissolúvel Educação e Nutrição, para atingir os objetivos da Lei n. 11.957, com novas disposições sobre alimentação escolar.

Fonte: Cadernos IHU em formação – Alimento e Nutrição “No contexto dos objetivos de desenvolvimento do milênio”

segunda-feira, 12 de maio de 2014

"Alimentação não é questão de caridade ou de assistência social", afirma dom Morelli



Dom Mauro Morelli esteve em São Leopoldo para participar de debate sobre nutrição. Reconhecido por sua luta contra a fome e a miséria, o religioso avalia que a batalha contra esses problemas passa por uma "mudança no conceito de desenvolvimento". A entrevista é de Marcelo Monteiro, publicada pelo jornal Zero Hora, 07-05-2014.


O planeta produz o suficiente para alimentar todos? Por que 1 bilhão ainda passa fome?

Em alguns lugares, há problema de produção, mas, em muitos outros, o problema está no acesso. Esse é um desafio muito grande. O que trabalhamos é o direito como fundamento. Não é porque tenho pena de criança com fome. Tenho vergonha. A criança privada do alimento fica mirrada, não se desenvolve, a humanidade dela foi negada e a minha foi atingida. Você não pode ser movido pela compaixão. Você não deve tratar a alimentação como questão de caridade ou de assistência social. Ela é um direito inalienável do ser humano.

Como erradicar a fome?

Com uma revisão profunda do modelo de desenvolvimento. Sem isso, estamos trabalhando com um conceito de desenvolvimento que degrada o ambiente e acumula riqueza. Há uma cultura do desperdício muito grande. Tudo é descartável. Com esse tipo de lógica, não temos como equacionar o problema da pobreza nem da fome. Temos de mudar nossos paradigmas, nossos conceitos de desenvolvimento, investindo em questões fundamentais como educação, alimentação e nutrição.

Por que o Brasil é um dos maiores produtores mundiais de grãos e, ainda assim, milhões não têm o que comer?

Porque se produz para o mercado externo, para a criação de animais fora daqui. Temos um mercado interno fabuloso. Se garantíssemos a esse mercado o acesso a alimento saudável e adequado, nosso povo seria mais inteligente. Uma criança fica atrofiada se não for devidamente gestada, alimentada, desenvolvida. Democracia não se faz com famintos. O que é a democracia? É participação. Em torno da mesa, vejo a expressão mais bonita da democracia. Você vê um pacto social de um grupo, uma família, em que se coloca sobre a mesa tudo em comum, e todos, igualmente, têm direito àquilo. Você cresce nas relações de humanidade em torno de uma mesa.

Como o senhor avalia a qualidade do alimento que se consome hoje no Brasil?

Não sei quem tem certeza se o que come dá vida ou traz morte. Você come um tomate e não sabe se é tomate ou se é veneno. Não basta alimento. É preciso alimento e nutrição. O alimento tem de ter aquela composição de sais minerais e outros nutrientes que são fundamentais para a minha saúde. Muita gente tem comida hoje. Há medidas assistenciais que possibilitam adquirir comida, mas cresce a obesidade. Isso é grave. As pessoas comem aquilo que engorda, mas não nutre.

Quais as consequências da concentração na produção de determinados produtos?

Você extingue a riqueza que a natureza dá, porque, para ganhar mais, concentra em poucos produtos. Enquanto o alimento for convertido em mercadoria e moeda, vai haver miséria e fome.

O que o senhor acha do uso massivo de agrotóxicos?

Não são necessários. Várias correntes trabalham com permacultura (agricultura sustentável) e produção orgânica. Existe conhecimento que nos permite produzir alimentos saudáveis sem esses produtos. Agora, se você continua na base da monocultura, é impossível afastar os insetos.